Criar pode ser revolucionário: repensando as tarefas de cuidado

 

Seria possível imaginar e colocar em prática outras possibilidades de formatos que garantam a reprodução da vida, mas que não estejam associados ao sistema que impõe à mulher as tarefas de cuidado?

 

Autora: Carolina Irschick

Tradução: Ligia Francilino

Revisão: Liz Tibau

Ilustração: Jade Nordahl (@ab.bel)

 

Se o contexto define a prática, então a vida doméstica é formada pelo combo: criar e limpar. Se a prática não está subordinada às pessoas, então é o espaço o responsável por definir que as tarefas domésticas são realizadas no âmbito “casa”. Este é um ponto importante, pois contribui diretamente para a sensação de aprisionamento e opressão.

 

Poderíamos facilmente enumerar um conjunto de tarefas domésticas que se desenvolvem em qualquer casa diariamente. Porém, se tivéssemos que definir em que consiste o ato de criar, a lista seria infinita e menos óbvia, pois esta é definida por critérios ideológicos e culturais, aprendizados anteriores, costumes e o possível e desejável para cada família.

 

De qualquer forma, somos nós, as mulheres, majoritariamente e em maior proporção de horas, mesmo em pleno século XXI, as encarregadas desse inquestionável 2×1, que também podemos chamar de dupla jornada de trabalho. Porque enquanto cuidamos, colocamos a roupa na máquina e cozinhamos ao mesmo tempo em que ajudamos com os deveres da escola, dobramos a roupa e quando as crianças se sentam para assistir TV, aproveitamos para limpar o chão. Ficou estabelecido que nós, mulheres, somos multitarefas e podemos focar em muitas coisas ao mesmo tempo. Sempre as mulheres, mesmo que a casa ou as crianças não sejam nossas ou que o trabalho seja remunerado.

 

Como é possível encarar essas múltiplas tarefas que nunca têm fim sem morrer de esgotamento? Estudos comprovam que, ao registrar sistematicamente as tarefas da mulher/ mãe/cuidadora/encarregada do lar, a quantidade de afazeres não cabe em 24h (sugerindo que a pessoa seja quase um robô que não descansa); então surge a necessidade de se planejar estrategicamente e render-se à multitarefa. (D’Atri, Andrea¹ (2004). “Feminismo y marxismo. Más de 30 años de controversia”, en Lucha de Clases #4; Hartmann, Heidi² (1980). “Un matrimonio mal avenido: hacia una unión más progresiva entre feminismo y marxismo”, en Zona Abierta #2.) 

 

Além disso, a noção de disponibilidade da pessoa responsável pelo cuidado, no caso de bebês e crianças menores, é base fundamental para a formação da subjetividade infantil. Por isso, habitar o mesmo espaço que um bebê de forma segura, atenta e tranquila não é o mesmo que cuidar de um bebê enquanto se realizam múltiplas tarefas domésticas e profissionais. É impossível equiparar o cuidado de uma pessoa que está verdadeiramente presente, concentrada na observação, atenção e afeto, que de uma pessoa que precisa atender a muitas questões por vez. Logo, à medida que a infância termina, as tarefas mudam e se adaptam para outras formas necessárias de atenção.

 

Esta posição de ser mãe e dona de casa, nos coloca em qual posição como sujeitas?

 

Algumas teóricas feministas³ definiram qual o papel das mulheres na equação capitalista: não existe produção sem reprodução da mão de obra, mas tampouco sem a reprodução do que torna o cotidiano possível: as tarefas de cuidado.

 

Essas lutas têm diferentes terrenos de disputa. Sem dúvidas, no seu campo material específico (o doméstico), porém, esse debate pode ser muito mais intenso dentro da esfera das políticas públicas. Qual elaboração podemos fazer para conquistar um desmonte das tradições e imposições, mas sobretudo, e de forma masiva, quais são as reais possibilidades ao reivindicarmos o pleno exercício de nossa cidadania (licenças familiares, renda básica universal, creches e escolas públicas, etc.)? Para além disso, resta repensar quais valores (simbólicos) podemos atribuir às tarefas de cuidado, quando dizemos: “eu não trabalho”.

 

Sob qual sistema está estabelecida a associação mulher + tarefas de cuidado (criar + limpar)? Que outros formatos podemos imaginar e colocar em prática para garantir a reprodução da vida?

 

Colocar na mesma categoria a higienização de um banheiro e o acompanhamento emocional das crianças, ou, ir à reunião escolar e pensar qual livro introduzir de acordo com o momento, seria limitar a experiência de criar. É um desrespeito com a infância. A criação é uma tarefa muito mais árdua, extenuante, duradoura e desafiadora. Ao mesmo tempo, criar pode se transformar numa tarefa prazerosa, que convoca o uso da criatividade, o afeto, a imaginação e muitas capacidades intelectuais. Em um mundo que não valoriza o cuidado, cuidar pode ser revolucionário.

 

Tanto a maternidade como os cuidados são experiências centrais da vida social: nós cuidamos e cuidam de nós e, muitas vezes, ambas as coisas ao mesmo tempo. Atualmente, enquanto tentamos colocar as tarefas de cuidado no centro da vida política e econômica, dissociar limpeza e criação poderia parecer um excesso. Entretanto, se viermos a questionar todas essas questões, estamos diante de uma grande oportunidade para reconhecer e valorizar o significado de criar, entender todas as potencialidades que essa responsabilidade carrega e provoca. Pensar no processo de criação como arte e não como uma atividade doméstica parece ser o ponto crucial.

 

 

[1] Andrea D’Atri é psicóloga, docente, escritora e dirigente política argentina.

[2] Heidi Hartmann, é uma economista feminista que é fundadora e presidente do Institute for Women’s Policy Research (Instituto de Pesquisa de Políticas Femininas). O livro citado no texto, no original “The Unhappy Marriage of Marxism and Feminism” (O Infeliz casamento entre Marxismo e Feminismo, em tradução livre).

[3] Nota da tradutora:

Ao questionar e politizar o papel sociocultural desenvolvido, majoritariamente pelas mulheres, dentro das tarefas do cuidado, me pareceu necessário mencionar o trabalho da teórica feminista ítalo americana, Silvia Federici, que cunhou o termo “Trabalho Reprodutivo” e liderou, ainda na década de 70 na cidade de Nova York, uma campanha reivindicando salário para o trabalho doméstico.

Para entender a associação que Federici faz entre “Trabalho Reprodutivo” e o sistema capitalista, deixo abaixo a transcrição de uma fala da autora:

“A análise que fizemos da forma específica de exploração que as mulheres sofrem em nossa sociedade capitalista, nos levou à conclusão de que, o contrato de casamento é de fato um contrato de trabalho. Nos casamos por amor, mas como escrevi certa vez num panfleto: “o que eles chamam de amor, nós chamamos de trabalho não remunerado”.

Na verdade, o casamento, a legislação e todas as regras que organizam o núcleo familiar, são parte da função que o trabalho da mulher na família e a própria família tem na reprodução da força de trabalho. Em outras palavras, através do casamento, existe uma troca entre homens e mulheres. O trabalhador assalariado se torna o sustentador de sua esposa, que presta serviços a ele, mas através desses serviços, todas as mulheres, em particular executam a força de trabalho. Então, parece que o casamento é motivado pelo amor, e parece que o trabalho de casa é um serviço pessoal para o homem ou os filhos, na verdade é a organização capitalista da reprodução de trabalho.

Como dissemos, a família/casa é a fábrica das mulheres, é o local onde dia após dia e logo, geracionalmente, realizamos todos os trabalhos e atividades que são necessários para reproduzir o trabalho e a capacidade das pessoas de trabalhar. A capacidade de trabalhar não é algo natural, é consumida e usada no processo de trabalho, e somos nós, a geração de mulheres, que fizemos o trabalho de produzi-la. Isso significa que, toda a classe capitalista, todos os empregadores se beneficiaram imensamente desse trabalho. Eles não precisaram produzir para criar uma infraestrutura que permitisse aos trabalhadores irem ao emprego diariamente. As mulheres têm sido a infraestrutura. E, chegamos à conclusão de que esse trabalho é realmente o mais importante na sociedade capitalista porque dá origem aos trabalhadores e sem eles não há trabalho. Então, o trabalho doméstico que, tradicionalmente, se tornou invisível, não sendo considerado um trabalho, é a base, a fundação e o apoio às outras atividades de trabalho. Agora podemos dizer que toda a riqueza que vemos ao nosso redor, nós também a produzimos e não só o trabalhador assalariado. Somos parte da perpetuação da máquina capitalista e do processo de acumulação”.

 

Para assistir a fala completa clique aqui.

Para as interessadas em ampliar essa questão, recomendo o estudo do livro “O Ponto Zero da Revolução”. O Coletivo Sycorax disponibiliza o pdf da obra de forma gratuita em seu site. 

Por fim, aproveitando o adendo, acredito ser fundamental pontuar que aqui no Brasil, o trabalho doméstico é realizado em grande parte por mulheres negras, fruto do histórico colonial de nosso país. Se as mulheres brancas burguesas podem gozar de seus empregos e de seu tempo de descanso e lazer, é graças a essa imensa massa de mulheres negras que deixam suas casas para exercer tal função. Portanto seria injusto não pontuar que, em nosso contexto, essa dupla jornada de trabalho é mais cruel com as mulheres não-brancas e periféricas. É interessante observar que outros países da América Latina, apesar de possuírem estruturas sociais e raciais distintas da nossa, também possuem um contexto similar, em que o cuidado é tarefa subalternizada, mesmo quando remunerada.

 

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